Domingo da Epifania
(Mt 2, 1-12)
Isto de ir perguntar a um rei onde está "O" rei que devia nascer, é provocação grande demais! Tudo aqui está em movimento nesta página cheia de andanças. Há duas cartografias e duas fotografias. Duas cartografias e duas fotografias de reinos diferentes...
Estou a escrever estas coisas na Guine-Bissau, onde o céu é maior que noutros lugares. Neste momento da noite não há luz elétrica nem nenhum barulho para além dos da terra. Estive lá fora um pouco a olhar para as estrelas e parece que quando a gente olha para elas, param de respirar, suspendem o fôlego para não fazerem ruído sequer, ficando apenas aquele tremelicar de quem está a segurar o ar por muito tempo. São caladitas as estrelas.
A imagem dos magos a seguirem o fio prateado de uma estrela é de uma leveza fantástica, uma metáfora cheia de poesia. Tudo é sossegado neste seguimento. A estrela desenha um risco na cartografia desta estória evangélica todo da cor da paz e do silêncio.
Mas ponho-me a olhar para a outra estrela que os magos encontram, a "Star" de Jerusalém, o rei faz-de-conta Herodes. Fixo-me nos seus pés como se os passos que dá deixassem rasto riscado no chão. E espanto-me com a evidência... É alguém que gira-gira, roda-roda, vai, chama, manda vir, a estes e aos outros... O risco dos seus passos segue à risca a sua própria circunferência! É alguém que deixa no chão um emaranhado de traços todos à volta de si próprio.
São duas cartografias de dois reinos muito diferentes! Um é o traço riscado no céu em forma de direcção e silêncio, como um segredo transmitido só num beijo. O outro é o novelo riscado no chão em forma de circuito fechado e curtinho, perímetro medíocre de influência e perturbação.
É sempre esta a luta da construção do Mundo Novo chamado Reino de Deus: o face-a-face com os anti-reinos que são os minúsculos e violentos impérios que vamos criando em função dos nossos egoísmos.
Estas são as duas cartografias, a do Reino de Deus todo caminho e direcção, e a do Anti-Reino todo circunfechado e desnorte.
Mas há também duas fotografias de apresentação destes dois reinos. E só para fazer memória dos rolos fotográficos, vamos revelá-las assim:
Fotografia 1. Era uma vez uns magos que encontraram um rei que ficou assustado, espantado e, atrás dele, conseguiu perturbar e alvoroçar a cidade inteira!
Fotografia 2. Era uma vez uns magos que encontraram um rei que - SHIIIUUU!!! - estava a dormir sossegado no colo da mãe.
O mal é ruidoso e os seus reinados são espalhafatosos! Mas a maneira de Deus é mansa, o bem não faz ruído, não barulha. Um rei em pânico a transtornar a sua cidade e um rei a dormir no sossego discreto do lugar onde começou agora mesmo a nascer.
Os magos perceberam estes sinais. Nós, nem sempre. Confundimo-nos com o barulho e enchemos os olhos com tamanhos! Surdos por falta de silêncio e aleijados dos olhos, vamos atrás de quem grita mais convincentemente ou de quem exibe maior influência para lhes entregarmos os tesouros da nossa vida.
Ouro, incenso e mirra... E, pelo cheiro, sou transportado para o livro grandioso do Cântico dos Cânticos: "antes que o dia desponte e as sombras desapareçam, quero ir ao monte onde há mirra e à colina onde há incenso", cantava o apaixonado à sua amada (Ct 4, 6)
E ela responde-lhe que se levantou para ir abrir a porta, "as minhas mãos gotejavam mirra, os meus dedos eram mirra escorrendo pelos trincos das fechaduras" (5, 5)
Já antes ela tinha dito que "o meu amado é para mim como esta bolsinha de mirra que trago entre os meus peitos" (1, 13)
Entretanto, neste cântico todo enamorado de alianças, um coro de jovens amigas da Noiva intervém para cantar esta pergunta: "Que é isto que sobe lá do deserto como colunas de fumo, com um cheiro tão intenso a mirra, a incenso e a todos os perfumes dos mercadores?" (3, 6)
Resposta? Era o rei, que chegava para as núpcias.
CHEIRA-ME que sem todo este mundo enamorado da escritura com os seus perfumes, não teremos chave de leitura correta para ler a entrega dos três presentes ao rei-menino que está ali anunciado enquanto dorme num lugar qualquer de Belém, a cidade de Salomão...
Depois de a Noiva abrir a cantiga com a deliciosa frase "Que ele me beije com os beijos da sua boca!" (1, 1), a primeira promessa do Noivo é "faremos para ti arrecadas de ouro" (1, 11). Por sua vez, a Noiva confessa que o seu amado é todo feito de ouro: "a sua cabeça é de ouro maciço... os seus braços são ceptros de ouro... os seus pés são ouro fino... e dos seus lábios, que são como lírios, goteja a mirra cujo perfume se espalha... a sua boca é só doçura, e todo ele é delicioso. Eis como é o meu amado; assim é aquele que eu amo." (5, 10-16)
Tudo é beleza e Enamoramento neste Cântico dos Cânticos que é uma cantiga de núpcias.
Conheci há umas semanas uma jovem guineense que foi baptizada na Vigília Pascal de 2014. Quis-me contar porque se converteu. Uma vez, há cerca de cinco anos, na casa de um familiar encontrou uma bíblia. Abriu por curiosidade e deu com um livro pequeno e poético chamado Cântico dos Cânticos. Leu de um fôlego e ficou sem fôlego. Ficou claro dentro dela esta certeza: um Deus que fala de amor assim, tem de ser o verdadeiro; uma religião que se permite acreditar num amor assim, pode dar sentido à vida.
No Catecumenado veio a descobrir que o grande Cântico dos Cânticos é o Evangelho, e que a vida de Jesus é toda ela um Poema Nupcial. Brilham os olhos desta mulher quando conversa destas coisas, porque foi na surpresa de um Deus que permite falar de amor assim que ela começou a descobrir o Caminho de Jesus.
Tudo é beleza e enamoramento, estamos talhados para isso! O brilho do ouro, o perfume do incenso e da mirra, naquela cultura tudo isso fala de sedução, atracção, erotismo, abraço, intimidade. Estamos no Terreiro dos Amores, na Tenda Nupcial, debaixo do Arco da Aliança. A Fé Cristã não é outra coisa que aderir a esta loucura de Deus em desposar-nos.
(6 janeiro 2015)
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