QUEM TE MANDOU MEXER NO QUE ESTAVA QUIETO?
4º Domingo do Tempo Comum
(Lc 4, 21-30)
A cena continua. A sina também, mas esse assunto fica para depois. Jesus entrou em Nazaré “levado pelo Espírito”, assim conta o evangelista. Jesus saiu de Nazaré “levado pela multidão” para um cimeiro qualquer de onde se queriam ver livres dele. É terrível este mistério das nossas rejeições a quem nos anuncie uma Liberdade tão radical: queremos ver-nos livres, sim, mas dele!
A leitura tinha sido recortada - à medida da fé de Jesus e seguindo o tracejado finíssimo da sua Esperança - do rolo do Profeta Isaías. A Boa Notícia aos últimos, a liberdade aos oprimidos e a alforria aos cativos. A meio, os amargurados que são como cegos a quem é preciso salvar pelos olhos. O pregão final era poderoso: “e proclamar o Ano da Graça do Senhor”, o Jubileu, tempo novo de regressos e ajustes solidários entre todos, tempo de perdão das dívidas e devolução dos bens arrestados ao longo dos cinquenta anos anteriores.
Grande leitura, apesar das linhas poucas.
Depois, aquele silêncio, antes da homilia.
Jesus sentou-se.
Todos à espera, fixos nele, cotovelos pousados no parapeito dos olhos.
E Jesus falou:
“Hoje mesmo começa a cumprir-se esta passagem da escritura para aqueles que a ouvem”
Silêncio.
Brilhante! Este Jesus é brilhante.
Homilia fantástica numa frase só.
O evangelista faz eco:
“Todos testemunhavam a favor dele
e estavam admirados com as palavras cheias de graça que saiam da boca dele”.
Na mouche.
Alguém diga “assim seja”, por favor,
haja alguém que diga “assim seja” para que isto fique por aqui!
Ninguém disse.
Jesus pegou na palavra outra vez.
Era preciso virá-la, passá-la bem do outro lado, onde estava ainda tão crua.
A homilia continuou e foi buscar histórias e passadas que só são boas de ter no passado mesmo. Ninguém as quer para agora! Há gente que só é santa quando morre. Histórias também. E Jesus vai buscar o que estava sossegado… Que Elias foi Profeta virado para fora, como tem para contar aquela viúva estrangeira lá de Sarepta, e Eliseu também andou a fazer favores dados pelo Deus “dos judeus” a um tal Naamã que, como se não bastasse ser estrangeiro, era da Síria e general de um exército que já tantas vezes tinha feito mal a Israel.
Quando as cabeças começam a inclinar-se com esta homilia, Jesus mete-se na fila destes profetas. “Eu também não fui enviado para aqui, para a minha casa, a minha terra, os meus parentes, os meus amigos, o meu povoado.” Em Cafarnaum, sim. Aqui, não. Porque até Cafarnaum já é além. Mas aqui é só aqui. E eu já não sou daqui.
Os seus parentes não gostam, apanham-lhe raiva. A doçura do filho da terra tornou-se amargo de boca. Os parentes mais próximos, imagino, ali num canto, cheios de vergonha e preocupação. Não o conhecem. “Ele nunca mais foi o mesmo depois que conheceu aquele João!” A mãe, coitada, a tentar fazer ainda o que conseguiu doutras vezes, “guardar estas coisas no seu íntimo e dar-lhes voltas no coração”. Mas agora, adulto assim, a expor-se assim, não está fácil. “Ele também abusa”… Para quê esta cena?! Porquê esta sina?!
E Jesus passa pelo meio deles. Não se lhe conta uma palavra mais. Nem um gesto. “Jesus passou pelo meio deles e foi embora”. Até me dói o gume desta frase. Saiu assim. Com sombra a dar-lhe pela cintura. Não são horas felizes, estas. São horas assim, pronto.
Nunca mais se diz que tenha voltado a Nazaré. O mais provável é que não tenha voltado mesmo. Ali tão perto. Jesus andava na Galileia, percorria as cidades em redor, mas de Nazaré já nada mais se conta. Os irmãos dele aparecem alguma vez por Cafarnaum, para o irem buscar porque ele “perdeu a cabeça” e era preciso ter mão nele! Não tiveram. A mãe estava lá e voltou para casa. Aparece no fim, na Hora do “nós bem te avisámos”, na Hora do “foi para isto?”, na Hora do “esperavas outra coisa depois de tudo o que fizeste?” Na Hora em que aqueles que o tinham acompanhado nestas aventuras também já não estavam lá, tragicamente desaparecidos num naufrágio dramático que tinha acontecido na noite anterior no Jardim das Oliveiras.
E pensar que tudo se tinha evitado com um “assim seja” na hora certa…"
Plano B Padre Rui Santiago